Canta Sabiá

Riachão e o diabo

Mestre Boca Rica

Riachão tava cantando
Na cidade do Açú
Quando apareceu o negro
Quando apareceu o negro
Ô meu bem, da espécie de urubu
Tinha camisa de sola, ai meu Deus
A calça de couro cru
Beiços grossos revirados
Beiços grossos revirados, ai meu bem
Como a sola de um chinelo
Um olho muito encarnado
Um olho muito encarnado
O outro bastante amarelo
O outro bastante amarelo
Esse chamou Riachão, ai meu Deus
Para vim cantar martelo
Riachão arrespondeu

Não canto com negro desconhecido
Porque pode ser cativo, ai meu bem
Andar por aqui fugido
Isso é dar calda a nambu
Isso é dar calda a nambu
Entrada a negro enxerido

[Negro]
Eu sou livre como o vento
A minha linhagem é nobre
Sou um dos mais ilustrados
Que o sol no mundo cobre
Nasci dentro da grandeza
Não sai da raça pobre
[Riachão]
Você nega por que quer
Você nega por que quer
Está fugido demais
Se você não for cativo, ai meu Deus
Obras desmente sinais

[Negro]
Seja livre ou seja escravo
Eu quero cantar martelo
Afine sua viola, ai meu Deus
Vamos entrar num duelo
Só por minha presença
O senhor já está amarelo

[Riachão]
Vejo um vulto tão pequeno
Que nem posso enxergar
Julgo que nem é preciso
Minha viola afinar
Pela ramagem da árvore
Vejo o fruto que vai dar

[Negro]
Riachão, isso são frases
De um homem muito atrasado
Pois se hão visto coisas
Que na terra tem se dado
Uma cobra tão pequena, ai meu bem
Mata um boi agigantado

[Riachão]
Eu preciso saber
De onde é seu natural
Pois não sei se o senhor
Tem nascimento legal
De qual nação que vem
Se procede bem ou mal

[Negro]
Você vem me interrogar
Eu pergunto a ti também
Diga aonde você vai
De que parte você vem
Se é casado ou solteiro
Que trabalho você tem

Riachão arrespondeu
Eu não tenho superior
Sou filho da liberdade
E não conto minha vida, ai meu Deus
Por não ter necessidade
Eu não sou foragido
Nem vou ser de autoridade
Você diz que tem ciência
Me dê uma explicação
Se a terra faz movimento
De quem é a rotação?
Por que é que em doze horas
Tem uma transformação?

[Negro]
O sol não é quem se move
E fica em seu lugar
A terra tá sobre o eixo
E o eixo faz rodar
E por essa rotação
Faz a luz do sol faltar

Cê hoje fique sabendo
Peso de um cantador
Quando me vede outra vez
Me trate de professor
Me dever obediência
Conhecer o meu valor

[Riachão]
O senhor diga seu nome
Eu quero lhe conhecer
Pois só assim vou dar
O valor que merecer
Em tudo que você diz
Ainda não posso crer

[Negro]
Eu já canto há muitos anos
Eu já canto há muitos anos
Não vou em toda função
Arranco ponta de touro
Quebro a fúria de um leão
Nunca achei esse ente
Que pra mim tivesse ação

O senhor pergunta assim:
De que parte venho eu?
Eu venho de onde não vai, ai meu Deus
Pensamento igual ao seu
Eu saí do ideal
Primeiro que apareceu

[Riachão]
Agora acabei de crer
Que tu és o inimigo
Te transformaste em homem
Para vir cantar comigo
Mas eu acredito em Deus
Não posso correr perigo

O negro olhou o homem
Com olho de cão danado
Riachão gritou: Jesus!
Homem em Deus sacramentado
Valei-me, Virgem Maria
A mãe do verbo encarnado

Iê, viva meu Deus